Estreia na 5ª feira (7.mar.2024) o documentário “Utopia – A história não se repente, mas às vezes rima”, do cineasta João Amorim, 50 anos.
Assista à entrevista (36min12s):
O filme de 1h17min tem diálogos entre o linguista norte-americano e ativista Noam Chomsky, 95 anos, e o diplomata Celso Amorim, 81, pai do diretor e assessor para Assuntos Internacionais do presidente Luiz Inácio Lula da Silva (PT). Amorim foi ministro das Relações Exteriores de Itamar Franco (MDB), de 1993 a 1995, e nos 2 primeiros mandatos de Lula, de 2003 a 2010.
O filme foi feito a partir da filmagem de 2 depoimentos em São Paulo separados por 4 anos. No 1º, em 2018, os 2 estavam juntos. No 2º, em 2022, as conversas foram separadas, para evitar a contaminação pela covid. O tema central das discussões foi a relação dos EUA com países da América Latina e o surgimento do neoliberalismo.
Assista ao teaser do documentário (1min38s):
João Amorim disse que, mesmo que fique restrito ao público de esquerda, o documentário será relevante para compreender o aumento de poder da direita recentemente.
Na avaliação do diretor, há desalento na esquerda por causa da força demonstrada por conservadores em eleições em vários países e em manifestações como a de apoiadores do ex-presidente Jair Bolsonaro (PL) na avenida Paulista, em São Paulo, em 25 de fevereiro.
“Existe uma coisa muito forte de falta de motivação, descrença de que a gente possa salvar o mundo, a humanidade. Existe também, inclusive da minha parte, um pouco de falta de compreensão desse processo histórico”, afirmou o diretor.
O documentário teve depoimentos gravados pelos 2 participantes em 2018 em 2022. Recebeu dinheiro do FAC (Fundo de Apoio à Cultura) do governo do Distrito Federal. Na avaliação de João Amorim, houve demora na liberação dos recursos por influência do governo Bolsonaro. A Secretaria de Cultura do Distrito Federal foi procurada para responder a isso. Não houve resposta até a publicação desta reportagem. O espaço segue aberto.
Abaixo, trechos da entrevista:
Quando surgiu a ideia de fazer o filme?
Foi em 2017, depois que o [Michel] Temer assumiu a Presidência. O Celso começou a dar umas palestras, viajou bastante, acabou num dado momento encontrando num painel o Chomsky. A mulher dele, brasileira, a Valéria, proporcionou esse encontro entre os 2. Meu pai, sabendo que eu era fã do Chomsky, me mandou a foto. Na hora eu falei: a gente precisa fazer um filme sobre isso. Em 2018, o Chomsky veio ao Brasil e aí meu pai me ligou e falou “Olha, você quer aproveitar para já gravar alguma coisa agora?” A gente marcou uma entrevista, uma conversa entre os 2 que aconteceu no dia do “Ele não” [20.out.2018, manifestação contra a candidatura de Bolsonaro], antes do 2º turno em 2018. A gente ainda não sabia qual ia ser o resultado das eleições. Esse material serviu para montar um teaser e desenvolver o projeto mais fundo. Com esse material, a gente foi correr atrás de editais para conseguir financiamento para o filme.
Quando e onde foram feitas as filmagens?
A 1ª parte foi feita em 2018, como eu disse, em São Paulo, e a 2ª parte foi feita em junho de 2022 também em São Paulo. Em 2018, o Chomsky já estava com 90 anos. Em 2022 com 94. Tinha muitas limitações, não podia caminhar num parque, não era uma opção. Em 2018, a gente fez a entrevista no apartamento que ele havia alugado. Em 2022, a gente alugou 2 apartamentos. A conversa [entre os 2] foi virtual. Devido à pandemia à idade avançada do Noam, a mulher dele não quis que tivesse toda uma equipe. Eu fiquei isolado por 5 dias para poder conduzir essa entrevista.
Sua presença foi a única da equipe técnica na gravação com o Chomsky?
Exato. Foi a exigência da esposa dele e foi coerente com o momento que a gente estava vivendo: que eu ficasse isolado 5 dias testando todos os dias e que não houvesse nenhuma outra pessoa no momento da entrevista, diferentemente de quando a gente filmou em 2018, [quando] tinha uma equipe um pouco maior.
Qual foi o seu objetivo ao fazer “Utopia”?
Eu acho que o objetivo final do filme é justamente elucidar um momento da história em que surgiu o neoliberalismo e como ele se associou à extrema direita para conseguir seus objetivos. Também a luta contra ele. Foi mostrar, como subtítulo do filme fala, que a história, por mais que ela não se repita, ela rima. Há momentos históricos, por exemplo pegando o Brasil, em particular como golpe de 1964 e o golpe/impeachment da Dilma [Rousseff]. São muito semelhantes: a forma como se deram, o apoio do governo americano, da burguesia brasileira, da mídia tradicional brasileira, de setores econômicos. Acho que a gente vê que a extrema direita está cada vez mais forte no mundo. E, por mais que a gente agora esteja tendo um respiro, um momento de alívio, ela continua viva. É o que a gente viu na [avenida] Paulista no final de semana. A eleição do [Javier] Milei na Argentina eu acho que é um alerta. Essas forças estão aí, e muito organizadas, cada vez com ferramentas de manipulação mais sofisticadas.
Na sua avaliação, a força da direita está em ascensão, estável ou em queda?
Certamente existe um movimento muito forte. Eu acho que nunca é uma força só. Ao mesmo tempo em que a gente tem um movimento de extrema direita liderado pelo Steve Bannon, que é mundial, e a gente vê isso nos Estados Unidos, vê agora na Argentina, em vários países da Europa, a gente viu no Brasil. Existem muitas mudanças promissoras também. Se você pegar os últimos 50 anos de história, a gente teve vários avanços em termos dos direitos das mulheres, de todas as políticas afirmativas, também de dar voz aos indígenas. Eu diria que o movimento de direita está em ascensão, certamente esse movimento que alia a extrema direita e essas pautas culturais, ao neoliberalismo, que busca eliminar qualquer influência do Estado sobre o lucro. Mas, ao mesmo tempo, a gente tem um movimento das mulheres, negros, indígenas, LGBTQIA+ que se contrapõe. Eu não gosto também de jogar a toalha e ser totalmente desesperançoso. A gente está vivendo um momento especial no Brasil agora. Eu espero que possa durar, que a gente possa realmente alavancar a nossa economia e dar a voz aos povos indígenas, à preservação do meio ambiente, a um desenvolvimento de fato sustentável. Mas sem baixar a guarda.
Como foi a produção? As duas personagens participaram da concepção, do roteiro, da edição?
A gente desenvolveu um argumento original junto com a Rafaela Camelo e depois o roteiro junto com o João Paulo Reys. A temática do filme foi exposta aos 2 [Noam Chomsky e Celso Amorim] e validada por eles, mas não ao ponto de dizerem “Põe isso, põe aquilo”. Quando você faz uma pergunta em um documentário, você não sabe o que que a pessoa vai responder. Você pode até achar que sabe e esperar uma resposta. Então a participação dos 2 foi mais nesse sentido. Acho que ambos têm agendas muito cheias e não teriam tempo de participar da edição, da montagem. Viram o filme e aprovaram.
Como ficou o resultado do filme como um todo em comparação com a sua expectativa inicial?
O que mudou foi relacionado ao momento em que a gente conseguiu de fato executar. O projeto foi aprovado em 2018. A 1ª conversa entre os 2 foi feita antes de saber que o Bolsonaro seria eleito. A 2ª, quase 4 anos depois, devido a embrulhos jurídicos e uma dificuldade enorme que o governo passado impôs para a gente conseguir viabilizar o filme. A gente só recebeu os recursos em maio de 2022. A gente fez a entrevista com cada um sem saber qual seria o resultado das eleições de 2022 e já sabendo que o filme ficaria pronto depois dela. Inicialmente, a minha ideia era fazer algo mais pontual sobre aquele momento para ajudar as pessoas a entender quão problemático era aquele governo. A gente teve que ampliar um pouco essa ideia e fazer um filme que fosse mais histórico, [sobre] esses ciclos da direita e da esquerda e da influência americana sobre os golpes, sobre o impeachment, fazer algo mais amplo. Foi um desafio, certamente, fazer um filme que não fosse ficar datado muito rapidamente. Mas eu acho que foi mais interessante para o filme, porque não ficou tão preso como muitos filmes que retratam o impeachment e o golpe. Eles são muito ligados àquele momento. A gente buscou fazer algo que retratasse um período histórico e que seja um filme interessante para as pessoas verem daqui a 5, 10 anos, também.
Além do financiamento, quais as maiores dificuldades para fazer o filme?
A covid e a idade avançado do Noam certamente foram [difíceis]. Conseguir agenda uma agenda que funcionasse para os 2 foi um grande desafio. O filme tem muita animação. Eu venho do mundo da animação, comecei minha carreira trabalhando como animador e busco nos meus documentários de diferentes séries que eu faço para a televisão utilizar esse recurso. Eu acho que no “Utopia” ele desempenha um papel fundamental. É uma coisa muito trabalhosa. A gente teve um roteiro 1º para cada uma das animações explicando para o animador o que que a gente pensava, o que que a gente queria retratar ali. Depois foram feitas as trilhas para finalmente criar a animação. É um processo demorado. Mas eu acho que valeu a pena, que traz uma leveza para o filme. Traz também a simplificação de algumas ideias muito complexas. A noção do backyard, do quintal, como os americanos chamam a América do Sul. A gente retratou isso de uma forma que eu acho que fica muito clara. A visão de que começou a incomodar os americanos quando a gente deixou de ser o quintal. É o surgimento do neoliberalismo, das medidas impostas pelo FMI [Fundo Monetário Internacional] na América Latina, como isso fez o país se desindustrializar, revender a indústria preço de banana, se tornar principalmente exportador de commodities. São coisas que são muito complexas. Foi bastante trabalhoso também outra coisa: mais de 600 imagens de arquivo, de diferentes épocas desde 1930 até hoje. [Foi] um trabalho de pesquisa fantástico feito pelo João Paulo Reys e um trabalho também para melhorar a resolução dessas imagens antigas para 4K feito pelo Gustavo Pastorino que ficou também excelente. Foi um trabalho muito árduo. É uma quantidade muito grande de imagens, todas de origem diferente. Foi bastante desafiador achar uma edição coesa, que tivesse um início, meio e fim, um arco narrativo que contasse uma história, porque é um filme sobre ideias. No final, fiquei bastante satisfeito. As trilhas também, 95% das trilhas são originais do Felipe Oliveira. Só com 3 músicas, duas do Caetano e uma que é do Gil e do Chico, foram licenciadas. O resto tudo são músicas originais.
Qual é, na sua avaliação, o impacto que o filme poderá ter nos debates sobre o cenário político atual no Brasil e em outros países?
Um documentário sempre vai ter um impacto limitado, porque tem muita competição de conteúdo de entretenimento disponível. Falam “ah, esse filme aí, só pessoas de esquerda vão ver”. Pode até ser. Mas eu acredito que, mesmo na esquerda, existe uma coisa muito forte de falta de motivação, descrença de que a gente possa salvar o mundo, a humanidade. Existe também, inclusive da minha parte, um pouco de falta de compreensão desse processo histórico, de como se deu a implementação do neoliberalismo, com o teste inicial no Chile com Pinochet e como isso depois foi levado para grande parte do mundo. Então, eu acho que compreender isso, mesmo que dentro do nosso circuito, já é muito válido. É algo que ajuda a gente ter uma compreensão melhor desse período que a gente viveu. É um alerta também a estarmos atentos ao que está acontecendo, porque o preço da liberdade vai ser essa vigilância eterna. Como o mote diz, a história não se repete, mas às vezes rima. A gente está suscetível no Brasil e em outros lugares. A gente vê agora o Trump liderando as pesquisas nos Estados Unidos. É a volta da direita. É um alerta para o centro e para a esquerda, para as pessoas que são contra o fascismo. O que aconteceu na [avenida] Paulista, em São Paulo, no último fim de semana prova que não é bem assim. A gente sabe muito bem que, no Brasil, se não fosse o Nordeste, o Bolsonaro seria o presidente.
Como foi trabalhar com seu pai no filme?
Foi interessante. Eu vivi na casa dele dos meus pais até os 17 anos. Depois, anualmente, sempre me reunia para festividades, Natal etc. Ele, como diplomata, sempre morando em outro lugar. Eu também passei muitos anos nos Estados Unidos. Mas a gente se via. Eu tenho um documentário que eu fiz para a TV uns anos atrás que ele participou chamado “Cooperação”. Então já tinha tido uma experiência anterior de entrevista. Foi interessante. Eu acho que eu a relação que eu tenho com meu pai é bastante formal, ele no mundo das ideias. Então eu não acho que ele tenha me tratado de uma forma diferente que ele trataria um repórter. Para mim, foi muito interessante entender melhor algumas coisas que eu escutava, de conversas na sala, que eu vivenciei ao longo da vida, de compreender algumas coisas com mais clareza. Também foi bastante interessante ver ele nesse papel de trazer as perguntas para o Noam. Eu acho que o que me marcou mais realmente foi poder ter estado sozinho com Chomsky, ter entrevistado ele, ter elaborado as perguntas e ver os 2 conversarem, porque muito do que o do que o Celso fala eu já tinha escutado dele ou lido nos livros dele, não necessariamente era tudo novidade. Essa relação Estados Unidos e a América Latina, acho que foi a pela 1ª vez o tema central de um filme.
Celso Amorim trabalhou com cinema antes e depois de se tornar diplomata. De 1979 a 1982, presidiu a Embrafilme. Em que medida houve influência disso na escolha da sua carreira?
Acho que muita. Somos uma família de 3 cineastas. São 3 irmãos e uma irmã. Os 3 são cineastas e minha irmã trabalha na OIT [Organização Internacional do Trabalho]. Ela seguiu mais essa parte diplomática. Então acho que ele acabou exercendo uma grande influência sobre os filhos. Eu, particularmente, não estudei cinema. Estudei design de produtos. Cheguei a trabalhar por 2 anos como designer de produto. Comecei no cinema por meio da animação, do desenho, animação 3D. [Quando criança] meu pai tinha um projetor Super8. Aos domingos, ele realizava sessões de cinema em casa com os filmes como Chaplin e clássicos da Disney. Isso certamente teve uma grande influência. Depois quando ele estava na Embrafilme, na virada dos anos 1980, eu me lembro que ele voltou uma vez dos Estados Unidos com um videocassete. E ao longo dos anos fez uma coleção enorme de filmes, italianos com Felini, Visconti, os grandes cineastas franceses, Bergman, os brasileiros também com Glauber, Leon. Ele sempre assistia com a gente, sempre estimulava a gente a assistir coisas que não fossem só cinema comercial. Muitas vezes passava tarefas, tipo “Assiste esse filme e faz um resumo [para receber] mesada”. Quando da era pequeno, vi os filmes do Chaplin da Disney. Chaplin teve uma grande influência sobre animação. Eu acho que ele [Celso Amorim] tem até um certo orgulho, se sente de certa forma realizado em algo que era um sonho dele pelo que os filhos têm feito.
Quais os seus próximos projetos?
Eu estou finalizando agora um documentário infantil com fantoches. Eu tenho esse trabalho com fantoches ao desde 2014. Fiz a última temporada do Vila Sésamo de 2014 a 2020. Fui o diretor-geral. Eu peguei um gosto pelos bonecos e desenvolvi 1º a série “Thiago e Ísis e os segredos do Brasil”, que foi ao ar ano no passado pela TV Brasil e Canal Futura. Agora, a gente está fazendo um longa ambiental com os mesmos personagens: “Thiago e os biomas do Brasil”, em processo de finalização. Deve terminar em maio para rodar os festivais no final do ano. Estou também preparando a pré-produção da 2ª temporada da série “Manual de Sobrevivência para o Século 21”, com Marcos Palmeira como apresentador. É uma série no qual ele tem experiências ligadas a uma vida mais ecologicamente correta. Na 1ª temporada, ele participou da construção de cisternas para captação de água de chuva e instalação de painéis solares, plantio de agroflorestas. Ele vivencia várias dessas experiências de sucesso ligadas à sustentabilidade. Estamos agora em desenvolvimento com o documentário sobre musicistas cubanas chamado “Sinfonia dos sonhos”. Mas isso ainda está em desenvolvimento, ainda não está sendo filmado.