*Por Valentine Faure
Em 17 de fevereiro de 2022, o bilionário francês Vincent Bolloré oficialmente se aposentou como presidente do negócio da família depois de mais de 40 anos liderando a empresa. O evento foi realizado na fortaleza da família, em uma pequena vila na costa oeste da França, e marcou a entrega cerimonial do poder de Vincent para 2 de seus filhos, Yannick e Cyrille.
Ao som de gaitas de foles, eles participaram de uma missão de celebração do aniversário de 200 anos do negócio da família, vestidos com trajes tradicionais da Bretanha para a ocasião. Ao saírem da capela, um grupo de manifestantes carregando placas com a mensagem “Stop Bolloré” lembrou os participantes da polêmica em torno das atividades do grupo.
Foi na Bretanha que o império Bolloré nasceu. O que começou como uma empresa de papel em 1822 eventualmente cresceu para se tornar um conglomerado vasto que incluiu incursões nos setores bancário, energético e logístico.
Grande parte da atenção, no entanto, tem se concentrado nas aquisições e manuseio de meios de comunicação pelo Grupo Bolloré, como a CNews, um canal de televisão no qual personalidades fazem rotineiramente declarações depreciativas sobre migrantes e instam os muçulmanos a renunciar à sua fé.
O veículo também foi intensamente criticado pelo que defensores da mídia e estudiosos dizem ser seu papel na legitimação de ideias de extrema-direita sobre imigrantes superando a população francesa.
Vincent Bolloré, que assumiu a empresa em 1981, montou um complexo emaranhado de propriedades de mídia frequentemente usando a mesma estratégia de aquisição. Seu modus operandi, agora ensinado em escolas de negócios em toda a França, consiste em adquirir pequenas participações em empresas e aumentá-las até que haja uma aquisição no mercado de ações, permitindo que ele se torne o maior acionista.
É um método que é tanto eficaz quanto controverso. Foi assim que ele passou a controlar a emissora de TV Canal+, a empresa de revistas Prisma Media, a rádio Europe 1, a revista semanal Paris Match e o Journal du Dimanche, o único jornal dominical independente da França.
Sob o controle de Bolloré, cada um desses veículos foi submetido aos mesmos métodos de redução de custos, mudanças de programação, demissões e mudanças editoriais.
Mas em nenhum lugar o modelo foi mais utilizado do que na CNews, que ocupa um lugar único no cenário midiático francês. A emissora foi lançada em fevereiro de 2017 e é transmitida gratuitamente para todos os domicílios.
Nos anos seguintes, ela gradualmente se impôs como uma versão francesa de baixo orçamento da Fox News, transmitindo pontos de vista inflamatórios para cerca de 8 milhões de telespectadores todos os dias, segundo a Mediametrie, uma empresa que compila classificações de televisão.
O canal de notícias, no qual personalidades comentam eventos atuais em estúdios sem plateia, tem um público mais velho –principalmente pessoas com mais de 60 anos, que vivem nas províncias. No canal 16, durante todo o dia, os apresentadores realizam debates e argumentam como se estivessem em um bistrô local, permitindo-se livremente fazer o que os franceses chamam de “dérapages” –comentários ultrajantes, na tradução livre– mas que acabaram se tornando a linha editorial.
A emissora também deu voz aos líderes da extrema-direita do partido Reagrupamento Nacional, como Marine Le Pen, Jordan Bardella e Sébastien Chenu. (Le Pen e Chenu agora ocupam assentos na Assembleia Nacional da França, graças a uma onda de apoio a Le Pen durante as eleições de 2022.)
O resultado surpreendente veio logo depois da fracassada candidatura presidencial do comentarista da CNews, Éric Zemmour, durante a qual ele defendeu “imigração zero”, proibindo o uso de lenços na cabeça e quipás (uma espécie de boina tradicionamente usada por judeus ortodoxos) em espaços públicos e construindo um muro para impedir a entrada de imigrantes.
Embora não tenha ido para o 2º turno de votação, a candidatura de Zemmour marcou um ponto de virada no cenário político. Ao tentar entender como a opinião pública se desviou tanto para a direita, muitos especialistas apontam para a família Bolloré e seu ativo mais provocativo, a CNews.
A economista francesa Julia Cagé, que estuda democracia, pluralismo midiático e financiamento de campanhas, compara Bolloré aos irmãos Koch, bilionários norte-americanos donos da Koch Industries, que usaram sua riqueza para criar um sistema de grupos de reflexão e advocacia projetados para exercer influência.
“Sua influência vai muito além da mídia. Ela se estende ao setor editorial, ao financiamento de cátedras universitárias. É uma estratégia que visa influenciar todas as formas de produção de pensamento”, disse Cagé.
O Grupo Bolloré tornou-se uma questão de preocupação democrática. Em 2021, a organização não governamental Repórteres Sem Fronteiras publicou um pequeno documentário sobre os diferentes veículos de mídia de Bolloré, denunciando os “ataques repetidos à liberdade de imprensa e à independência dos escritórios editoriais [que] constituem uma ameaça sem precedentes à democracia”.
Em fevereiro de 2022, um coletivo chamado “Stop Bolloré”, formado por sindicatos, associações, jornalistas e comentaristas de esquerda, denunciou a construção de um “império midiático tentacular” pelo bilionário, que serve a uma “ideologia reacionária”.
“A linha editorial [da CNews] mostra uma obsessão por temas de extrema-direita. Rompendo com toda a ética jornalística, não se trata mais de informar os cidadãos, mas de transformar mentes”, afirmou o grupo.
Naquele dia de 2022 na Bretanha, enquanto a empresa estava sendo entregue para a 7ª geração dos Bollorés, o império midiático estava mais forte do que nunca, com uma influência que ressoa por toda a França.
Mesmo que a liderança da empresa tenha tecnicamente mudado de mãos, o homem que a transformou em uma gigante não estava se afastando completamente. “Estou passando adiante, mas não pretendo desaparecer”, disse o bilionário francês.
Vincent Bolloré
Nascido em 1952, Bolloré passou seus anos de formação entre a mansão da família no Bois de Boulogne, na extremidade oeste de Paris, a vila de Ergué-Gabéric, na região administrativa da Bretanha, e Saint-Tropez (onde a família Bolloré mantém seu iate).
Seu pai, Michel, era uma figura da alta sociedade parisiense e amigo próximo do ex-presidente francês Georges Pompidou. Mas Michel Bolloré quase faliu o negócio da família. Foi seu filho mais novo, Vincent, que assumiu o comando, diversificando suas atividades em energia, agricultura, transporte, logística, frete marítimo e publicidade.
Sob a liderança de Vincent, o Grupo Bolloré expandiu para mais de 100 países. Seu negócio logístico na África, que representou até 80% dos lucros da empresa e foi vendido, foi alvo de investigação.
Em 2018, Vincent Bolloré foi colocado sob investigação pelo Escritório Central de Combate à Corrupção e Delitos Financeiros e Fiscais da França.
“Em fevereiro de 2021, o senhor Bolloré admitiu sua responsabilidade por acusações de corrupção ativa de funcionários públicos estrangeiros e cumplicidade na quebra de confiança na África”, reportou o Le Monde.
“O grupo Bolloré foi suspeito de ter pago por serviços prestados pela Havas, uma subsidiária da Vivendi, durante as campanhas eleitorais dos presidentes togoleses e guineenses, em troca de favores relacionados aos portos de Lomé e Conacri”, disse o veículo frances em reportagem publicada em 21 de dezembro de 2022.
Bolloré afirma ter investido na mídia para envolver seu filho Yannick nos negócios. Ele é descrito como uma pessoa noturna com pouco interesse nas atividades industriais do grupo.
Assim, em 2005, ele lançou o canal de televisão Direct 8, um veículo quase surrealmente amador e totalmente ao vivo que transmite programação política e de entretenimento. Também estreou o Direct Matin, um jornal diário gratuito, em 2007.
Cerca de 5 anos depois, ele vendeu ambos para o Grupo Canal+, então de propriedade da Vivendi, um conglomerado de mídia na França. Ele negociou uma troca de ações que lhe permitiu obter uma participação na Vivendi.
Inicialmente, como um acionista pequeno, Bolloré rapidamente acumulou uma participação acionária maior por meio de recompras de ações, até se tornar o maior acionista da Vivendi em 2012, o que lhe deu algum controle sobre as propriedades midiáticas que vendeu para a Canal+ alguns meses antes.
A “CNews”
A CNews foi construída sobre as ruínas de sua antecessora, a i-Télé, uma rede de notícias de propriedade do Grupo Canal+, que fechou depois uma histórica greve editorial em outubro de 2016.
Esse protesto foi um dos mais longos na história da radiodifusão privada e levou à saída de cerca de 100 jornalistas, incluindo freelancers, de acordo com os sindicatos envolvidos.
A greve foi uma reação à contratação do apresentador de TV Jean-Marc Morandini –amigo de Bolloré– mesmo ele estando sob investigação por “corrupção agravada de menores” e “assédio sexual e trabalho não declarado”. (Um dos queixosos alegou que Morandini havia pedido para ele se masturbar na frente dele como parte de uma audição.) Morandini recebeu uma pena suspensa de 1 ano no 1º caso e de 6 meses no 2º, embora tenha recorrido de ambas.
A i-Télé se posicionava como algo semelhante à CNN de baixo orçamento, com repórteres em campo e foco em hard news, economia, assuntos internacionais e política. Mas o canal estava perdendo grandes quantias de dinheiro e o formato de debate, que é muito mais barato, gradualmente dominou a programação.
Em maio de 2016, Bolloré nomeou Serge Nedjar, um leal ex-diretor do Direct Matin, como diretor-geral e diretor-editorial do veículo, uma mudança que sinalizou uma ruptura dos padrões editoriais tradicionais de objetividade.
O Direct Matin, que foi renomeado CNews alguns anos depois, por exemplo, foi acusado em várias ocasiões de servir aos interesses de Vincent Bolloré, promovendo o Autolib, serviço de compartilhamento de carros elétricos da empresa, e eventos esportivos transmitidos pelo Canal+.
Uma vez que a CNews foi lançada em fevereiro de 2017, a operação de coleta de notícias foi efetivamente dominada e a programação de opinião dominou a emissora.
“Não assistimos mais a um canal de notícias para saber o que está acontecendo! Temos todas as notícias em nosso smartphone”, disse Nedjar ao Le Parisien em junho de 2020. Segundo ele, o que importava agora era o debate. “Não nos restringimos a nenhum tema ou palestrante sobre os assuntos que preocupam as pessoas”, disse.
Se o canal não reivindica explicitamente uma afiliação política, a atitude de “liberdade de expressão” à qual a CNews se apega tem uma inclinação bem definida.
No programa principal da emissora, “L’Heure des Pros”, os convidados gritam uns com os outros sem muita preocupação com os fatos. A imigração é um tema consistente, assim como as ameaças percebidas à segurança, o hijab, o lenço usado por mulheres muçulmanas, e, cada vez mais, a importação cultural norte-americana chamada de “le wokisme”.
Na CNews, é possível ser sarcástico sobre o aquecimento global quando a temperatura cai abaixo de zero. Um jornalista pode relatar, sem ser contrariado, a estatística falsa de que “50% dos jovens muçulmanos nos subúrbios afirmam apoiar o Estado Islâmico” ou descrever o novo ícone da esquerda ambiental como “uma Greta Thunberg na menopausa”.
Um vídeo de Didier Raoult –um médico e defensor do movimento anti-vacina– comparando o tratamento daqueles que não se vacinam ao dos judeus durante a 2ª Guerra Mundial foi exibido no canal com pouca contradição.
Então, em 31 de outubro de 2021, uma linha foi ultrapassada quando Renaud Camus, o escritor explicitamente xenófobo cuja frase de efeito “Grande Substituição” –que afirma que a população francesa “nativa” será substituída por populações de imigrantes– foi convidado, apesar dos protestos da equipe editorial.
A mídia tradicional testemunhou o surgimento do canal com uma mistura de perplexidade e desprezo. O Le Monde publicou um artigo intitulado “Uma semana assistindo apenas à CNews”, como se fosse uma jornada em um país estrangeiro. O Télérama tem uma coluna de humor que regularmente tem como alvo a notoriedade exagerada dos convidados.
A radicalização dos canais de notícias é, claro, um fenômeno internacional. Mas a CNews atraiu atenção internacional por ser mais do que apenas outra rede de direita.
Mais do que simplesmente apoiar um candidato, ela produziu o seu próprio, Zemmour, que concorreu à presidência em 2022 e foi comparado ao ex-presidente dos EUA Donald Trump.
“Trump passou da TV para a Casa Branca. Mas ele foi o candidato do Partido Republicano, enquanto Zemmour é o candidato de um grupo audiovisual”, disse o ex-presidente francês François Hollande em entrevista ao Corriere della Sera em outubro de 2021.
“Recriminamos Silvio Berlusconi por colocar suas TVs a serviço de sua carreira política, mas agora há um grupo privado, o Bolloré, que escolheu Zemmour como porta-voz de seus interesses”, afirmou.
Éric Zemmour
Zemmour, um jornalista proeminente que passou a maior parte de sua carreira no jornal de direita Le Figaro, já era uma presença familiar tanto na TV quanto no rádio, desempenhando regularmente o papel de francês reacionário da literatura.
Ele se juntou à equipe da CNews como colaborador especial em outubro de 2019. Todos os dias, no “Face à l’info”, Zemmour lia um artigo de opinião e depois debatia os acontecimentos do dia com um oponente, sob a arbitragem benevolente de um apresentador supostamente “imparcial”.
Nessa função, Zemmour defendeu a sangrenta conquista da Argélia e o general francês que liderou o massacre. Ele também criticou menores desacompanhados: “Eles são ladrões, são assassinos, são estupradores, é só isso que são. Eles devem ser mandados de volta”, disse, com pouco confronto no ar.
Durante um debate contra o filósofo Bernard-Henri Lévy, ele defendeu uma de suas causas favoritas: a ideia de que o Marechal Pétain realmente salvou judeus franceses durante a 2ª Guerra Mundial. Os comentários resultou em um processo contra Zemmour por “contestação de um crime contra a humanidade”. (Pétain colaborou com os nazistas para deportar judeus franceses. Zemmour foi absolvido, mas a Corte de Cassação, o mais alto tribunal da França, decidiu em setembro que ele seja julgado novamente.)
A audiência triplicou em poucas semanas e, até 2021, atingiu até 900.000 telespectadores –um enorme sucesso para a CNews, que se tornou o 2º canal de notícias mais assistido, atrás da BFM-TV, o principal canal de notícias criado em 2005.
Representantes da CNews, de Bolloré e do Grupo Bolloré recusaram repetidos pedidos de comentário. No entanto, em julho de 2022, Nedjar defendeu a organização, argumentando no Le Parisien que, “a extrema-direita não avançou por causa de nosso canal”.
“Alcançamos 2,1% da audiência quando France 2 e TF 1 têm entre 14% e 20%. Estamos recebendo um poder que não merecemos”, disse.
No entanto, esses números não captam a extensão da influência da CNews. Em depoimento perante uma comissão do Senado sobre concentração de mídia em janeiro de 2022, Bollore minimizou o alcance de seu conglomerado, afirmando que é “um anão” em comparação com empresas como Apple, Sony e Disney.
As palavras de Zemmour, no entanto, ecoaram em todo o ecossistema midiático francês. “Ninguém mais ousava falar de estrangeiros nesses termos”, disse Alexis Lévrier, professor de história do jornalismo na Universidade de Reims. Zemmour nos trouxe “de volta às palavras usadas na imprensa de extrema-direita entre as duas guerras [mundiais]“, afirmou.
O autor Daniel Schneiderman, em seu livro “A Guerra Antes da Guerra”, publicado em 2022, fez uma comparação entre a radicalização da CNews e a imprensa nacionalista antissemita que se desenvolveu por jornalistas ultra-politizados –como Charles Maurras, um antissemita áspero– na década de 1930.
A retórica continua útil para a extrema-direita tentar motivar sua base eleitoral, embora o alvo tenha mudado: agora são os muçulmanos franceses –cerca de 10% da população. Claramente ecoando os jornalistas antissemitas do passado, Zemmour repetidamente exigiu que os muçulmanos renunciem à sua fé para “se assimilarem” à maioria.
“A força da CNews vem do fato de que, ao contrário da Fox News, eles se apresentam como fracos, a voz dos desfavorecidos”, disse o historiador da mídia Alexis Lévrier.
“É uma inversão da realidade: a audiência da CNews certamente é [relativamente pequena], mas eles influenciaram o restante da mídia”, afirmou.
A France Inter, principal estação de rádio pública nacional, há muito tempo é chamada em círculos de extrema-direita de “Rádio bolcho”, de bolchevique, por causa de sua linha editorial considerada de esquerda.
No entanto, em 2021, eles contrataram Alexandre Devecchio, escritor do Figaro Vox e editorialista da CNews, como um símbolo de pluralismo, dando a ele uma audiência muito mais ampla.
Enquanto isso, a France 5, principal emissora pública de televisão, causou alvoroço quando encarregou, em fevereiro de 2022, o polemista canadense Mathieu Bock-Côté, defensor do “anti-woke” e substituto de Zemmour na CNews, de dirigir um documentário sobre a campanha presidencial. (A CNews proibiu Bock-Côté de assumir a tarefa.)
Nos últimos anos, jornalistas políticos franceses têm perguntado regularmente aos candidatos sobre a “grande substituição”, uma ideia que Zemmour promoveu muitas vezes na CNews, permitindo que ela saísse das profundezas da ideologia de ultradireita para a mídia convencional.
De muitas maneiras, Zemmour moveu a Janela de Overton, que descreve o grau de aceitação da opinião pública em relação a temas importantes, do país. A vitória sem precedentes de Le Pen no Parlamento significou não somente um aumento considerável na arrecadação de fundos para o seu partido, mas também mais exposição na mídia, em razão das regras que exigem que a televisão e o rádio deem tempo de transmissão proporcionalmente ao peso eleitoral.
Um estudo recente mostrou que, de 2019 a 2020, o tempo de tela dedicado a convidados da extrema-direita na CNews aumentou em quase 15 pontos percentuais em relação aos 6 anos anteriores.
Em uma semana de agosto de 2020, por exemplo, o ex-executivo do Reagrupamento Nacional Jean Messiha, conselheiro de Marine Le Pen na época, desfrutou de mais de 9 horas de tempo no ar no canal em 5 dias.
A CNews também foi criticada pela Arcom, a agência reguladora de mídia francesa, por não respeitar o pluralismo político e a regra de que as diferentes “correntes de pensamento e opinião” devem ter acesso justo ao tempo de tela.
A CNews foi advertida por ter reservado “condições de programação extremamente desfavoráveis” para representantes do governo ou do partido de extrema-esquerda LFI, deixando suas aparições para a madrugada e em horários de baixa audiência.
Essas inflexões ideológicas podem ser vistas em outros veículos controlados pelo Grupo Bolloré. Em 23 de junho, Geoffroy Lejeune foi nomeado editor-chefe do jornal dominical Le Journal du Dimanche.
Lejeune é amigo e defensor de Zemmour e havia sido demitido da Valeurs Actuelles, uma revista semanal de extrema-direita, por ser muito radical. A notícia de sua chegada ao comando de um jornal centrista que se tornou uma instituição provocou protestos de todo o espectro político. Desde então, o veículo contratou 3 jornalistas da RT France, um canal de propaganda financiado pelo Estado russo e suspenso na França desde a invasão da Ucrânia.
OUTRAS INVESTIGAÇÕES
Em janeiro de 2022, Vincent Bolloré foi interrogado pela comissão do Senado francês sobre a concentração de mídia. Ele não foi o único alvo de investigação. A comissão interrongou todos os outros magnatas da mídia francesa, incluindo Patrick Drahi, fundador da operadora de TV a cabo Numericable (que se tornou Altice), e Xavier Niel, que possui uma participação no Le Monde.
O depoimento de Bolloré, no entanto, estava entre os mais aguardados. Definindo-se como um “democrata cristão”, ele negou buscar um projeto ideológico. A mídia, argumentou, é um negócio muito lucrativo. No entanto, ele defendeu o “tesouro” em que seu império se baseia –a história e a cultura francesas: “Quando produzimos Versalhes, quando produzimos Clóvis, é mais interessante do que quando fazemos Superman 1, 2, 3, 4, 5, 6, 7, etc.”, disse.
No entanto, uma auditoria interna confidencial revelou as dificuldades financeiras enfrentadas pelos canais da Vivendi. A CNews deveria ter equilibrado as contas pela 1ª vez em 2022, mas, em vez disso, teve um déficit de € 4 milhões, segundo o La Lettre, um veículo de notícias investigativo que analisa o funcionamento dos poderes político, econômico e de mídia da França.
O peso da CNews no debate público não se converteu em lucros, concluiu a agência de notícias. “Parece que, para Vincent Bolloré, o interesse em controlar esse canal não está em sua lucratividade, mas apenas em sua influência no debate público”, disse.
Em abril de 2022, a Bolloré Africa Logistics foi vendida para o MSC Group por € 5,7 bilhões, dando à empresa um influxo considerável de dinheiro. Mas isso não marcou o fim da influência da empresa em todo o continente.
“O Grupo Bollore continuará fortemente envolvido na África, especialmente através da Canal+, e também continuará a desenvolver neste continente suas atividades em muitos campos, como comunicações, entretenimento, telecomunicações e publicações”, disse a empresa em comunicado.
Quatro dias depois da cerimônia familiar na Bretanha, a Vivendi lançou oficialmente uma oferta pública de aquisição do conglomerado de mídia Lagardère –que possui a Hachette Livre– o 3º maior grupo editorial do mundo.
Bolloré já havia comprado a Editis, o 2º maior grupo editorial da França, e planejava fundir as duas empresas em um conglomerado gigantesco. Em 9 de junho, as autoridades antitruste da Comissão Europeia autorisaram a aquisição pública sob a condição de que o grupo vendesse a Editis.
Em 25 de julho, a Comissão Europeia anunciou uma investigação para determinar se o grupo de Vincent Bolloré havia cometido uma “aquisição antecipada”. Isso poderia resultar em uma multa de até 10% de sua receita. Este caso ainda está pendente.
Desde que Yannick assumiu, não houve muita mudança na CNews. A programação ainda alimenta e cria divisões dentro da França. A cobertura da emissora do ataque a Israel em 7 de outubro e do bombardeio de Gaza por Israel provocou comentários anti-muçulmanos.
Depois do ataque, o apresentador de “L’heure des Pros”, Pascal Praud, descrevia a guerra como um “conflito de civilizações”, afirmando que “Israel está na ponta do Ocidente e o que está em jogo lá pode um dia estar em jogo em Paris”.
Poucos dias depois, Éric Zemmour foi convidado a comentar, afirmando seu apoio à autodefesa de Israel e declarando que “o Ocidente está em perigo mortal por causa da crescente islamização de todos os nossos países”. Outro convidado sugeriu que “muitos muçulmanos trabalham em obras e têm acesso a explosivos. Se houvesse uma ordem para matar judeus, poderia haver um ataque todos os dias”.
Nas últimas semanas, um apresentador da CNews perguntou a um convidado se a infestação de percevejos em Paris poderia estar relacionada aos refugiados e um colunista pediu a “recolonização, mesmo que somente econômica” da África.
A marca de Vincent ainda está sendo deixada na empresa. Foi com Vincent que o bilionário tcheco Daniel Kretinsky negociou diretamente a compra da Editis da Vivendi. A venda, anunciada em junho, é um passo fundamental para satisfazer os reguladores que, de outra forma, bloqueariam a empresa de adquirir a Lagardère.
Vincent também está supervisionando propostas de aquisição para a Telecom Italia, da qual a Vivendi é a principal acionista. Apesar de ter deixado o cargo, Vincent Bolloré não está se afastando.
*Valentine Faure é redatora colaboradora do Le Monde e autora do livro sobre violência feminina “Lorsque je me suis relevée, j’ai pris mon fusil”.
Texto traduzido por Jessica Cardoso. Leia o original em inglês.
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