Um levantamento realizado por pesquisadora da USP (Universidade de São Paulo) mostra que o STF (Supremo Tribunal Federal) decidiu ao menos 636 sobre o mandato de congressistas desde 2005. A pesquisa abrange o período de 1988 a 2022, mas o número de decisões desse tipo ficou mais frequente nas últimas duas décadas.
De 1988 a 2004, o Supremo tomou apenas 36 decisões do gênero. Segundo a pesquisa, nesse intervalo há “baixa e esparsa ocorrência de decisões”. Já de 2005 em diante, o total é de 636 –o equivalente a um aumento de 1.660%.
A pesquisa foi realizada pela cientista política e doutoranda em Harvard Gabriela Fischer Armani. As decisões dizem respeito a todos os processos que poderiam ter algum tipo de impacto nos mandatos de congressistas.
Foi levado em conta a análise de decisões em 3 esferas diferentes: criminal (como inquéritos, ações penais, investigações, medidas cautelares, etc), eleitoral (aqueles que emergem de conflitos relacionados às eleições, como crime eleitoral, impugnação de mandato, etc) e “parlamentar” (conflitos que começam na “arena parlamentar” e vão parar no Supremo, como discussões de nomeação, renúncia ou processos de cassação).
A partir da análise dos dados coletados, Fischer percebeu padrões na atuação da Corte, fazendo com que a pesquisa fosse dividida em 4 períodos.
O 1º, em que se verificou o menor número de decisões acerca do mandato de deputados e senadores, foi de 1988 a 2004. Das 36 decisões, 30 são da esfera criminal. Dentre elas, 22 dizem respeito a decisões de mérito ou de encerramento de ações penais.
No ciclo seguinte, de 2005 a 2014, foram detectadas 240 decisões do tipo. Na divisão por esfera, 127 pertencem à criminal, 84 são da esfera parlamentar e outras 28, da eleitoral. O período, segundo Fischer, inaugurou o “processo penal sistemático” de congressistas federais, em que mais ações chegaram a decisões da Corte.
O período coincide com o início dos julgamentos que envolviam políticos do escândalo do Mensalão. Muitos processos foram ao STF por causa do foro privilegiado, mecanismo que dá o direito a determinadas autoridades de serem julgadas por tribunais superiores.
“Esse ciclo apresenta a ascensão de decisões de esfera parlamentar, e isso também tem a ver com o Mensalão. Porque diferente da Lava Jato, a estratégia de muitos políticos era renunciar, então discussões de disputa de cargo também tinham a ver. Houve cassações e muita renúncia, e isso produz a disputa sobre quem vai assumir o mandato e foi parar no Supremo”, afirma a pesquisadora.
Ela também justifica esse aumento por conta da Lei da Ficha Limpa, instituída em 2010 e que regulamenta restrições à elegibilidade.
Já no 3º período, de 2015 a 2018, a pesquisadora aponta para uma inversão na prevalência das esferas e um novo padrão de casos: das 275 decisões, 198 são da esfera criminal –com a variação dos tipos de medida, como cautelares, prisão em flagrante, buscas e apreensão. Outras 62 pertencem à esfera parlamentar e 14, à eleitoral.
Da mesma forma que o período anterior é marcado pelo Mensalão, os anos do 3º ciclo identificado por Fischer compreendem a Lava Jato. Para ela, a operação foi um marco, alterando o “modus operandi” até os dias atuais.
“No Mensalão, embora tenha havido o processo criminal de muitos políticos, essa não era uma estratégia aparentemente nem do Ministério Público. Isso vem a partir de 2015, e tem tudo a ver com a Lava Jato. Ou seja, a demanda muda –é mais variada e maior– e o Supremo também passa a acolher mais, proporcionalmente, essas demandas “, declara.
A conclusão é de que os 4 anos que compreendem o período representam uma ascensão geral da frequência de decisões sobre controle de mandatos, causada, segundo a pesquisadora, pelo aumento proporcional nas esferas criminal e parlamentar.
Já em relação ao período mais recente, de 2019 a junho de 2022, a peculiaridade é a queda no número de decisões. Foram 121 no total, sendo 98 da esfera criminal, 18 da eleitoral e 7 da parlamentar, caracterizado por uma diminuição abrupta na nessa última esfera.
“Apesar da redução, a variedade das decisões se manteve. Parece que, após o período de ápice da operação Lava Jato, o tribunal seguiu tendo que lidar com a –ou fazendo uso da– porta que se abriu”, diz a pesquisa.
Tensionamento com o Congresso
A avaliação da pesquisadora é de que a tensão vivida entre Congresso e o Supremo foi crescendo ao longo do tempo, considerando o aumento de decisões do STF que tem como tema ações que podem impactar no mandato dos deputados e senadores.
Exemplo da tensão que foi sendo estabelecida entre ambos poderes é a reação do Congresso a decisões do Supremo, como a limitação de decisões monocráticas ou o projeto que quer definir mandato de 8 anos para ministros.
Segundo Fischer, parte dessa relação delicada é reflexo de um judiciário que ficou mais ativo ao longo dos anos, o que leva ao que ela classifica como uma “imprevisibilidade da vida política”, uma vez que, por haver mais judicialização de casos que envolvem políticos, espera-se que a classe dos congressistas fique busque, de alguma forma, se proteger.
“Uma parte desse tensionamento tem a ver com o fato de que hoje muitos congressistas têm alguns fiapos no Judiciário […] Tem tantas possibilidade de o Supremo interferir na vida política de alguém que é até esperado, de alguma forma, que os congressistas fiquem mais na defensiva, ou, inclusive, queiram atacar de volta. É uma imprevisibilidade que não estava no jogo há 10 anos”, afirma Fischer.
No entanto, a pesquisadora também credita parte do problema aos próprios deputados e senadores que se elegeram, por vezes, com discursos de descrédito ao Judiciário. Para ela, muitas das críticas de congressistas a decisões de ministros ou à Corte pode ter a ver com demandas de suas respectivas bases eleitorais.
“Eu não diria que algumas PECs vêm porque o Supremo está interferindo no mandato de alguém. Acho que eles estão mais receosos porque há um Judiciário mais ativo, mas ao mesmo tempo há muitos congressistas que se elegeram surfando na onda desse discurso anti-judiciário”, ponderou.
Fischer aponta, ainda, outro fator para o tensionamento da relação: a reação do Congresso, que ajudou no aumento do número de decisões tomadas pelo STF quanto aos mandatos.
“O Congresso muitas vezes legitimou essa ação do Supremo. As demandas, sobretudo as parlamentares, são aquelas que congressistas pedem ao STF para interferir nos mandatos dos outros, então tem um elemento de competição política”, diz.