Problema fiscal é “calcanhar de Aquiles” de plano monetário, diz Loyola

O ex-presidente do Banco Central, Gustavo Loyola, disse que o problema fiscal no Brasil é o “calcanhar de Aquiles” da estabilidade monetária. Em entrevista ao Poder360, comentou que o alto deficit primário e a ausência de ajustes nas contas públicas ameaçam uma crise econômica.

Descartou a possibilidade de uma volta da hiperinflação a curto prazo, mas afirmou ser necessário “fazer a tarefa de casa”. Explicou que o Brasil perdeu uma das principais bases do Plano Real: o equilíbrio das contas públicas.

Desde o governo Dilma (PT), “a história nunca mais foi a mesma do ponto de vista fiscal, mesmo que tenha havido uma recuperação com a aprovação do teto de gastos”.

Embora não tenha feito parte da implementação do Plano Real, Loyola esteve na presidência do Banco Central em 2 momentos históricos da mudança monetária. Ocupou o cargo durante a efetividade do Plano Collor II (1992 a 1993) e voltou à função no 1º ano do novo projeto econômico (1995 a 1997).

Eis trechos da entrevista:

Poder360: O senhor esteve na posição de comandar o Banco Central em dois momentos do Brasil: antes e depois do Plano Real.  Qual era o problema do Brasil na época, na sua visão, e por que só o plano real conseguiu reduzir a hiperinflação?

Gustavo Loyola: Acho que o Brasil do ponto de vista macroeconômico tinha 3 graves problemas:

  1. a inflação, que vinha se acelerando de maneira continuada com breves intervalos entre os planos anteriores que fracassaram; 
  2. endividamento externo, a crise da dívida externa, que vinha se arrastando desde os anos 80 e sem solução definitiva. Junto com isso havia também um montante de dívida interna bastante expressivo indexado em moeda estrangeira: e
  3. desequilíbrio das contas públicas, que perdura até hoje. 

Os planos anteriores fracassaram porque eles não atacaram algumas fontes de desequilíbrio, como as questões externa e fiscal. O Brasil tinha uma economia muito fechada, pelo menos até o governo Collor e, portanto, quando você decretava um plano, principalmente quando tinha congelamento [de preços], gerava uma demanda adicional e havia uma redução da oferta. Os preços estavam congelados e não tinha como sustentar esse congelamento. Por fim, a interferência que os planos tinham nos contratos, as chamadas tablitas [tabela criada durante a vigência do Plano Bresser para correção inflacionária dos contratos de aplicação financeira com valor de resgate pré-fixado], conversões e essas coisas. 

Por que o plano deu certo?

  • se sabia o que não dava certo;
  • o plano foi anunciado com antecedência e houve a fase de transição da URV (Unidade Real de Valor);
  • dispensou qualquer tipo de interferência nos contratos privados;
  • veio quando o Brasil praticamente tinha encerrado as negociações da dívida externa. Não estava totalmente equacionada, o Brasil ainda não tinha reservas internacionais tão fortes quanto hoje, por exemplo, mas já estava um pouco mais equacionada;
  • já tínhamos um grau de abertura econômica, embora o Brasil ainda tivesse uma economia fechada;
  • houve uma preocupação de encaminhar algum tipo de ajuste fiscal naquela época, então foi constituído o tal do Fundo Social de Emergência que era basicamente uma maneira de desvincular despesas, desvincular receitas. O fundo social de emergência, diziam, que não era nem fundo, nem social, nem de emergência, era uma maneira de você criar essa margem fiscal.

Infelizmente durante o governo Dilma (PT), a gente perdeu uma das bases do plano de estabilização que era o equilíbrio fiscal, porque desde o governo Fernando Henrique passando pelos 2 primeiros mandatos do Lula e uma parte do mandato da Dilma, o governo brasileiro teve superavit primário. Perdeu isso durante o governo da Dilma e de lá para cá nunca mais a história foi a mesma do ponto de vista fiscal, embora tenha havido tentativa de recuperação com aprovação do teto de gastos, mas com muita repressão fiscal.
As bases do plano estão aí, o Brasil tem um regime de metas e acho que houve um aperfeiçoamento importante com a autonomia do Banco Central, que veio só há pouco tempo, mas acabamos de abandonar teto de gastos adotando o arcabouço fiscal que está sem muita credibilidade. Infelizmente essa questão fiscal ainda não conseguimos resolver, e é um calcanhar de Aquiles e uma ameaça grande que nós temos hoje para a estabilidade monetária aqui no Brasil.
Acho interessante colocar que uma coisa foi o plano, o choque positivo que trouxe, de reduzir a inflação. Outra coisa é a nossa tarefa diária de manter a estabilidade econômica, que não é uma condição suficiente para que o Brasil possa crescer mais, mas é necessária. Mudou para melhor de lá pra cá, mas tem muito ainda para fazer.
O gasto público no Brasil hoje, além de ser excessivo, é mal distribuído e nosso sistema tributário é injusto e tem muita coisa para mudar, mas não dá para fazer essa mudança no contexto de desarranjo fiscal. O mercado passa por uma tensão por causa disso e é por causa disso que o Brasil não tem juros mais baixos.

O tripé macroeconômico criado com o Real depende de uma meta fiscal. Em maio, o Brasil teve um deficit primário de R$ 60,98 bilhões. Olhando para um futuro em que, supostamente, manteremos um cenário de déficit alto. O senhor acredita que o país risco de uma nova hiperinflação?
Eu não vejo esse risco no horizonte de curto prazo, mas é uma grande preocupação porque a razão é muito simples: existe um limite do endividamento. Não é um limite fixado, esse limite vai ser dado pelos agentes econômicos no momento em que eles acreditarem que essa dívida não vai ser honrada e houver um descrédito em relação a capacidade de um governo em honrar essa dívida.
Se a gente de fato não fizer nada, em algum momento, você vai ter 2 opções. Ou o calote da dívida, que realmente seria desastroso, porque ao contrário do que algumas pessoas imaginam, a dívida não é do mercado financeiro, é no fundo de todos nós. E a outra seria uma hiperinflação, que reduzisse o valor real da dívida.
É preciso ter responsabilidade com a questão fiscal porque a gente vai empurrando para as gerações futuras uma conta que pode não ter como ser paga.

Em um documentário sobre o Plano real, economistas relembram que pediram para que fosse aprovado um ajuste fiscal antes do plano. Isso mudaria o cenário que temos hoje?

Os problemas fiscais brasileiros começam com a Constituição de 1988: primeiro a criação de direitos onerosos em que a maioria ficou sob responsabilidade do governo federal, a descentralização das receitas para os Estados e municípios. Então se criou despesas do governo federal e se transferiu receitas para estados e municípios. Talvez o mais grave foi criar vinculações orçamentárias. Com isso a situação fiscal começou a se deteriorar.
Quando chegou no Plano Real houve uma tentativa de desvincular receitas, mas depois conseguimos até fazer um ajuste fiscal, que perdurou por um tempo pela Lei de Responsabilidade Fiscal, por exemplo, mas infelizmente durante o governo de Fernando Henrique não se conseguiu aprovar a Reforma da Previdência, que teria feito uma grande diferença. E não foi por falta de atenção do governo, eu acredito, mas talvez tenha faltado condições políticas naquele momento de fazer essas reformas que mudassem o âmago da questão. Por exemplo, quando o governo Temer criou o teto de gastos, nós economistas alertamos que era uma coisa positiva, mas seria preciso fazer outra reformas porque senão o aumento das despesas compulsórias acabaria derrubando teto. Não tem jeito.
E o governo fala em aumentar a receita, mas não adianta. Toda receita que você cria, acaba criando mais despesas, fica só mais pesado para a sociedade. 

Em uma conversa com economistas para o especial do Plano Real, eles dizem que seria impossível a gente ver uma nova hiperinflação no Brasil por conta, entre outros motivos, da independência do Banco Central. O senhor vê também que esse seria o principal motivo?

O Banco Central vai sempre remar contra a corrente, só que o custo vai aumentando porque é um pouco de economia política, não só de política econômica. O esforço vai ficando muito grande, os juros ficam alto, o Banco Central vai tencionado cada vez mais a ponto de chegar a uma situação que politicamente fica insustentável a autonomia do Banco Central. Então assim o Banco Central não é o 4º poder, autonomia do Banco Central é autonomia concedida pelo Congresso.
Olhando um lado mais técnico da questão, existe o que chamamos de dominância fiscal: quando o aumento de juros do Banco Central tem efeito exatamente o contrário do que ele pretende. Quando o Banco Central sobe os juros, o objetivo é derrubar a inflação, mas quando há uma percepção de que o aumento de juros vai provocar uma crise fiscal ou uma crise financeira esse aumento de juros se torna contra proficiente. Ou seja, piora a situação ao invés de melhorar.
Então a autonomia do Banco Central cria custos adicionais para que o país escolha o caminho da inflação. É uma barreira, mas não é intransponível.
O banco central autônomo para pendurar precisa ter ao lado dele uma política fiscal que também seja responsável. Só a política monetária sustentar isso durante algum tempo é possível, mas não é para vida toda.

Antes do Plano Real e depois, qual a principal diferença que o senhor sentiu ao presidir o Banco Central?

O Banco Central tem como missão garantir ou manter o poder de compra da moeda. Antes do Plano Real, essa era uma missão impossível. Você tinha uma instituição que tinha uma missão impossível.
O que Banco Central fazia na parte monetária naquele momento era simplesmente tentar manter a situação minimamente sob controle do ponto de vista monetário, no ponto de vista do balanço de pagamentos, não havia como ter uma política monetária que buscasse a estabilização porque ela sozinha não conseguia mais.
A partir do Plano Real, o Banco Central recuperou os seus instrumentos para atingir a sua missão, que é justamente manter poder de compra. Então mudou da água pro vinho, o Banco Central passou a ter uma política monetária ativa, principalmente pela adoção do regime de metas de inflação em 1999.

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