Testes clínicos concluíram que a vacina de dose única contra a dengue produzida pelo Instituto Butantan tem eficácia de 79,6% em participantes sem evidência de exposição prévia à doença e de 89,2% entre aqueles com histórico de exposição. Os resultados foram publicados na 4ª feira (31.jan.2024) no New England Journal of Medicine.
O imunizante se mostrou eficaz e seguro contra os sorotipos da dengue DENV-1 e DENV-2. O ensaio clínico de fase 3 foi realizado com 16.235 participantes, em 16 centros de pesquisa espalhados pelo Brasil. A expectativa do instituto é submeter a vacina para aprovação da Anvisa (Agência Nacional de Vigilância Sanitária) neste ano.
“Quando falamos de vacina da dengue, estamos, na verdade, falando de 4 vacinas ao mesmo tempo. Esse é o aspecto mais difícil: fazer com que 4 vacinas contra os 4 tipos de vírus da dengue andem em caminhos paralelos e induzindo à proteção de forma equilibrada”, disse Esper Kallás, um dos autores do artigo, diretor do Instituto Butantan e professor licenciado do Departamento de Moléstias Infecciosas e Parasitárias da Faculdade de Medicina da USP (Universidade de São Paulo).
A eficácia contra a DENV-1 foi de 89,5% e contra a DENV-2, de 69,6%. Os sorotipos DENV-3 e DENV-4 não foram detectados durante o período de acompanhamento.
O percentual de eficiência foi maior entre os adultos. Leia o índice por faixa etária:
- participantes de 2 a 6 anos – 80,1% de eficácia;
- participantes de 7 a 17 anos – 77,8% de eficácia;
- participantes de 18 a 59 anos – 90% de eficácia.
“Em termos gerais, depois de 2 anos [o resultado de] 80% é excelente para esses 2 tipos. Existem pequenas variações da faixa etária, mas o que é importante é que a gente tenha tido esse resultado”, afirmou Jorge Kalil, diretor do Laboratório de Imunologia do Incor (Instituto do Coração) da Faculdade de Medicina da USP.
Os efeitos colaterais à vacina dentro de 21 dias depois da injeção foram mais comuns com Butantan-DV do que com placebo (58,3% dos participantes e 45,6%, respectivamente). São eles: dor de cabeça, fadiga, erupções avermelhadas na pele, dor muscular no local da aplicação, entre outros.
Quanto aos sorotipos DENV-3 e DENV-4, que não foram detectados nos participantes dos testes clínicos, Kalil disse: “Estamos acumulando mais informações contra os tipos 3 e 4, incluindo a indução de anticorpos contra a dengue”.
Os voluntários da pesquisam tinham de 2 a 59 anos, eram saudáveis ou portadores de doença clinicamente controlada. Eles foram separados e randomizados por idade (2 a 6 anos; 7 a 17 anos; e 18 a 59 anos).
“A vacina contra a dengue do Instituto Butantan representa um grande avanço para o país”, declarou Dimas Covas, professor da USP e ex-diretor do Instituto Butantan de 2017 e 2022. “A publicação dos resultados iniciais do estudo clínico, que envolveu mais de 16.000 voluntários, mostrou elevada eficácia com apenas uma dose, o que a diferencia das vacinas de outras companhias. Também é um grande exemplo da importância de desenvolvermos a biotecnologia nacional.”
Atualmente, existem duas vacinas tetravalentes de vírus atenuados disponíveis no mundo. A Dengvaxia, aplicada em 3 doses, é licenciada em vários países e indicada para pessoas de 9 a 45 anos. Porém, indivíduos não expostos previamente ao vírus têm risco aumentado de desenvolver dengue grave depois da vacinação. A OMS (Organização Mundial da Saúde) recomenda o uso da Dengvaxia somente em pessoas que tiveram contato com o vírus ou, se a triagem não estiver disponível, em áreas endêmicas (com soroprevalência –que é a proporção de casos de infecção– de pelo menos 80%).
Já a tetravalente Qdenga recebeu aprovação na Indonésia e na UE (União Europeia). No Brasil, a formulação aprovada pela Anvisa em 2023 deve ser aplicada em duas doses e é indicada para pessoas de 4 a 60 anos. Recentemente, o Ministério da Saúde anunciou sua incorporação ao PNI (Programa Nacional de Imunização) a partir de 2024.
De acordo com Esper Kallás, a vacina produzida pelo Butantan apresenta vantagens em relação às demais. “A distribuição de idade que pode ser vacinada é mais elástica. Começa em crianças a partir de 2 anos”, ressaltou.
Tecnologia nacional
A Butantan-DV começou a ser desenvolvida por um virologista do NIH (National Institute of Health) nos Estados Unidos. À época, Steve Whitehead buscou maneiras de enfraquecer os diferentes tipos de vírus existentes em seu laboratório. Deste processo, foram verificados 80 tipos de vírus até chegar à combinação ideal dos 4 que fariam parte da vacina. “Nessas fases iniciais, os estudos estavam restritos aos Estados Unidos, onde eram feitos testes de cada um dos componentes isolados”, explicou Esper Kallás ao Jornal da USP, em entrevista concedida em 2018. “A coisa foi dando certo e ele foi achando a combinação ideal desses 4 vírus até juntar em uma vacina só.”
O então diretor do Instituto Butantan, Isaías Raw, se interessou pela vacina e assinou um acordo com o NIH para adquirir a fórmula do imunizante no Brasil. Financiamentos da Fapesp (Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo) foram essenciais para a transferência de tecnologia, ou seja, levar o conhecimento da produção da vacina para o Instituto Butantan.
Para transformá-la em um imunizante viável, já que o NIH utilizava um preparado da vacina suspenso em líquido que deveria ser armazenado a uma temperatura de −70 °C, os pesquisadores do Butantan fizeram a liofilização da fórmula. “Você transforma a vacina líquida em um pó e isso permite que ela seja armazenada em uma temperatura refrigerada. O problema da distribuição logística praticamente acabaria”, contou Esper Kallás.
Logo depois, um grupo de pesquisa escreveu um projeto para iniciar os ensaios clínicos de fase 1 (1ª etapa de testes, em um grupo pequeno de seres humanos, de uma medicação cuja eficácia foi comprovada na fase pré-clínica) no Brasil. Quando submeteram o projeto, a Anvisa permitiu iniciar os estudos já na fase 2, pois a 1ª parte já tinha sido feita nos Estados Unidos.
O desafio dos pesquisadores, além de verificar a segurança e a eficácia da vacina em um número pequeno de participantes (300), foi comparar a vacina líquida, produzida nos Estados Unidos, com a vacina em pó, produzida pelo Instituto Butantan. Até aquele momento, ainda não se sabia quantas doses seriam necessárias para garantir a imunização e se a vacina funcionaria para quem já teve dengue.
“A gente queria saber todos os detalhes com amostras mais frequentes de sangue para realizar a análise, visitas, checagem de eventos e efeitos colaterais que a vacina, porventura, pudesse induzir”, afirmou Kallas. “Documentamos algo que nenhum outro estudo tinha mostrado: a vacina do Butantan também tinha capacidade de instruir células do nosso sistema de defesa a combater o vírus, que é o que chamamos de imunidade celular. Isso deu muito ânimo, junto com as boas taxas de produção de anticorpos que começamos a ver, a procurar a Anvisa novamente e dizer que já tínhamos instrumentos suficientes para iniciar a fase 3, que seria o estudo definitivo.”
A Anvisa aprovou e o projeto passou por vários comitês de ética até ser lançado no 1º semestre de 2016.
Aumento de casos
Dados recentes divulgados pelo Ministério da Saúde mostram que, nas primeiras semanas de 2024, o Brasil já registrou um acumulado de 217.841 casos prováveis de dengue. São 15 mortes confirmadas e 149 estão em investigação.
A vacina contra a dengue do Butantan é um dos poucos produtos desenvolvidos no país com sua tecnologia transferida para a multinacional Merck Sharp & Dohme. Em 2018, a companhia fechou um acordo com o Butantan, concordando em pagar US$ 100 milhões para ter acesso à tecnologia e poder explorá-la comercialmente fora do Brasil. “Esse acordo permitiu vários investimentos na área produtiva do Butantan, assim como na construção do Museu da Vacina”, disse Dimas Covas.
Como os testes da vacina estão sendo finalizados, a expectativa é que ela seja enviada em breve para aprovação da Anvisa.
“São várias etapas que estão andando paralelamente. Uma delas é ter as informações completas para envio à Anvisa. Esperamos fazer isto no 2º semestre deste ano”, finalizou Esper Kallás.
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Com informações do Jornal da USP.